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O uso de Cannabis (THC) na redução de danos do MDMA
Estima-se que dentre os/as usuários/as que consomem MDMA, 95% também utilizam cannabis. Os efeitos da combinação de ambas substâncias vêm se tornado alvo de diversos estudos neurocientíficos, não apenas pela popularidade do seu co-uso, senão também pelas implicações dos efeitos opostos que induzem. Uma pesquisa da Universitat Pompeu Fabra assegura que o efeito hipotérmico (redução da temperatura corporal) e as propriedades anti-inflamatórias do THC podem atuar como neuroprotetores, prevenindo a hipertermia (elevação da temperatura corporal), a ativação glial e a perda axonal de neurônios dopaminérgicos causados pelo MDMA.
O que é o MDMA?
O MDMA (3,4-metilenodioximetanfetamina), mais conhecido como “bala” ou “ecstasy”, é um fármaco sintético psicoativo, derivado da feniletilamina, assim como a mescalina e as anfetaminas. Compartilha com elas a capacidade de induzir um amplo espectro de efeitos psicológicos, comportamentais e sensoriais, como por exemplo: sentimento de bem-estar, empatia, euforia, distorção da percepção e das experiências táteis.
Como funciona o MDMA no cérebro?
O MDMA aumenta a atividade de pelo menos três neurotransmissores (mensageiros químicos que regulam o estado de ânimo, reflexos, memória, etc): a serotonina, a dopamina e a norepinefrina. Os efeitos mais famosos do MDMA, como o incremento da empatia, sociabilidade, intimidade e a diminuição do sono, são fundamentalmente causados pelo intenso aumento de serotonina (conhecida como “o hormônio da felicidade”), que por sua vez, se relaciona com a secreção de oxitocina (conhecida como “o hormônio dos abraços”).
Mas como isso acontece?
Como outras anfetaminas, o MDMA aumenta a liberação dos neurotransmissores antes mencionados e/ou bloqueia sua reabsorção, produzindo níveis mais altos que os normais na fenda sináptica (o espaço entre um neurônio e outro na sinapse). Mas quando a droga se degrada e a síntese da nova serotonina ainda não está pronta (pode levar até vários dias), o déficit de serotonina afunda o cérebro em uma “ressaca de serotonina”, uma sensação parecida com a depressão e irritabilidade.
MDMA e neurotoxicidade
O que sabemos até agora
O uso prolongado de MDMA, anfetaminas e/ou metanfetaminas causa severos transtornos neurológicos e psiquiátricos, incluindo surtos psicóticos. As complicações neuropsiquiátricas estão relacionadas, em parte, aos efeitos neurotóxicos que esta droga pode induzir no sistema nervoso.
Embora o mecanismo de ação pelo qual o MDMA induz efeitos neurodegenerativos seja atualmente desconhecido, estudos neuroquímicos e anatômicos apontam para a ação conjunta de vários possíveis agentes que causam alterações nas vias serotoninérgicas e dopaminérgicas do cérebro, como: formação de metabólitos tóxicos do MDMA e consequente geração de radicais livres (átomo/molécula instável e altamente reativo por possuir um número ímpar de elétrons em sua última camada eletrônica), juntamente com processos de estresse oxidativo, lesões celulares, apoptose dos neurônios (morte celular programada) e ativação de células nervosas auxiliares (microglias e astrogliais), vinculadas a processos inflamatórios e de reparação do tecido nervoso.
A importância da hipertermia na neurotoxicidade
A hipertermia (aumento da temperatura corporal) é um dos principais sintomas da toxicidade aguda induzida por MDMA e a causa da maior parte dos episódios fatais atribuídos à droga (existem casos de até 43°C de temperatura corporal).
Devido as suas propriedades estimulantes e as situações em que se consomem, o MDMA está associado com a atividade física vigorosa por longos períodos de tempo em ambientes que muitas vezes podem ser fechados e quentes.
Um dos mecanismos mais eficazes para minimizar a neurotoxicidade da MDMA é reduzir a temperatura do ambiente ou utilizar outras substâncias antitérmicas, que ajudam a controlar a temperatura corporal, como por exemplo, o THC.
O contrabalanço do MDMA e a Cannabis
Efeitos opostos
Dentre os/as usuários/as de MDMA, 95% também consomem cannabis, o que converte o THC na principal droga anti-térmica que chega aos/as consumidores/as de ectasy.
O co-uso freqüente de ambas as drogas torna particularmente interessante estudar os efeitos da sua combinação, uma vez que o MDMA e a maconha induzem diversas respostas farmacológicas opostas. Enquanto o MDMA causa hipertermia, hiperlocomoção, ansiedade, inflamação, estresse oxidativo e dano neuronal (favorecido por temperaturas elevadas); o THC, principal composto psicoativo da cannabis, produz hipotermia, hipo-locomoção, apresentando efeitos ansiolíticos, anti-inflamatórios e antioxidantes.
Uma nova perspectiva sobre o uso conjunto: a pesquisa
Estudos realizados na primeira década dos anos 2000 descreveram os efeitos do THC e do MDMA em relação a atividade locomotora, ansiedade, temperatura e dependência de THC.
No entanto, a possível capacidade neuroprotetora do THC como atenuante da neurotoxicidade causada pelo consumo reiterado de MDMA nunca tinha sido relatada, até uma pesquisa desenvolvida pela neurocientista Clara Touriño e colaboradores/as em 2010 (Neurobiologia do Comportamento da Universitat Pompeu Fabra – Barcelona, Espanha).
Para avaliar o efeito do aumento da temperatura sobre o sistema nervoso, foram definidos duas abordagens de estudo: experimentos com ratos a temperatura ambiente (21°C) e experimentos com ratos a temperatura quente (26°C). Os animais receberam uma injeção de THC (3 mg/kg) e uma hora depois, também foi administrada uma injeção de MDMA (20 mg/kg), ou uma solução salina (grupo de controle), a cada duas horas.
Até agora, sabemos que no sistema nervoso central, nos órgãos e nos tecidos periféricos o THC se une a dois receptores, CB1 e CB2. Com o objetivo de entender qual deles está mais relacionado ao efeito hipotérmico causado pelo THC, os animais foram pré-tratados com os antagonistas desses receptores (AM251 para o CB1 e AM630 para o CB2), bem como se utilizaram ratos sem o receptor CB1, sem o receptor CB2 ou com ambos receptores canabinóides.
Como o THC e o MDMA afetam a temperatura corporal e a integridade do tecido nervoso
Resultados da pesquisa:
THC E MDMA SOBRE E TEMPERATURA CORPORAL
Conforme já tinha sido demonstrado, o papel da temperatura ambiente afeta diretamente a capacidade do MDMA para gerar hipertermia no sistema nervoso e desencadear dano neural.
O MDMA induziu uma hipertermia moderada nos experimentos a temperatura ambiente (21ºC) e uma hipertermia grave em ambiente quente (26°C).
Quando o THC foi administrado a animais tratados com MDMA, a hipertermia foi impedida, tanto nos experimentos a 21°C como nos experimentos a 26°C. Também se observou que os efeitos hipotérmicos do THC foram mediados pela ativação do receptor CB1 e não o CB2.
Estes resultados indicam que a temperatura ambiente quente potencia os efeitos hipertérmicos do MDMA, mas não afeta os efeitos hipotérmicos do THC.
MARCADORES DE DANO NEURAL
Astrócitos e microglias (células auxiliares do tecido nervoso) são ativados sempre que o sistema nervoso sofre alguma alteração, o que são considerados marcadores de dano neurológico.
Consistente com o que já vimos, o MDMA induziu uma ativação significativa de astrócitos e microglias nos experimentos com animais a 26°C, o que significa que a neurotoxicidade foi potenciada em ambiente quente.
Por outro lado, o THC suprimiu a ativação de micróglias e astrócitos induzida pelo MDMA e o dano celular, a partir dos receptores CB1 e CB2. Os resultados também apontam que as propriedades anti-inflamatórias do THC podem contribuir para a redução da ativação glial induzida pelo MDMA.
PERDA DE AXÔNIOS DE NEURÔNIOS DOPAMINÉRGICOS
Para avaliar se o dano neural induzido por MDMA (que como vimos, desencadeou a ativação de microglias e astrócitos) resultou também em perda de neurônios dopaminérgicos, foi estudada a integridade dos axônios desses neurônios. Além disso, a hipertermia induzida pelo MDMA aumenta com a temperatura ambiente quente, o que, consequentemente, é esperável que agrave a degeneração axonal.
Quando a temperatura foi 21°C, o MDMA induziu uma hipertermia leve, que causou dano neural moderado, mas que não foi suficiente para provocar a perda de axônios de neurônios dopaminérgicos.
Em contraste, a forte hipertermia induzida pelo MDMA a 26°C, provocou danos severos no sistema nervoso, que desencadearam uma ativação glial acentuada, uma alteração importante na estrutura do corpo estriado (uma parte do diencéfalo) e uma redução significativa dos níveis de TH (a enzima responsável pela conversão do aminoácido tirosina no DOPA, que por sua vez é o precursor da dopamina). Isso demonstra que a temperatura elevada aumenta o poder neurotóxico do MDMA, promovendo a formação de derivados neurotóxicos e aumentando a captação desses metabólitos no interior da célula.
Nesse cenário, foi avaliado o efeito do THC na perda axonal em condições de forte hipertermia, em animais a 26°C. O THC evitou a destruição dos axônios dos neurônios dopaminérgicos induzida pelo MDMA em alta temperatura. O receptor de THC CB1 parece ser responsável por esse efeito.
Concluindo…
Apesar das limitações da extrapolação dos resultados obtidos em animais para humanos, há evidências suficientes de que o consumo de MDMA induz efeitos neurotóxicos muito seletivos e persistentes no sistema serotoninérgico cerebral quando administrado repetidamente e em altas doses.
Apesar que ainda é desconhecido o mecanismo exato sobre como o MDMA se torna neurotóxico, é sabido que a alta temperatura aumenta a formação e a absorção de metabólitos tóxicos de MDMA (subprodutos resultantes do metabolismo do MDMA), o que incrementa o estresse oxidativo (desequilíbrio entre a produção de espécies reativas de oxigênio e a capacidade de reparar os danos resultantes), causando dano nas terminais nervosas e levando à neuroinflamação manifestada pela ativação glial, que eventualmente, conduz a degeneração axonal.
Como vimos, a redução da temperatura corporal causada pelo THC pode atenuar a formação e a absorção de metabólitos tóxicos e prevenir a neurotoxicidade do MDMA em ratos. Isso aconteceu não apenas à temperatura ambiente, em que o dano cerebral é leve, mas também na temperatura mais elevada, onde os efeitos neurotóxicos do MDMA são fortemente potenciados.
Além disso, as propriedades anti inflamatórias do THC, que já têm sido amplamente relatadas, demonstraram apresentar fortes efeitos neuroprotetores em uma ampla variedade de distúrbios do sistema nervoso central, de forma que também podem contribuir para atenuar a neurotoxicidade induzida pelo MDMA.
Limitações da pesquisa: Podemos confiar nas pesquisas feitas em outros mamíferos?
A avaliação do potencial neurotóxico do MDMA em seres humanos está concentrada em métodos indiretos (neuroimagem, neuroquímica e dados clínicos), uma vez que não há evidência direta (estudos histológicos) sobre os efeitos do ecstasy no tecido cerebral humano. O desenvolvimento das pesquisas estão afetadas tanto pelo caráter ilegal da substância (que não permite utilizar pessoas como modelos experimentais padronizados), quanto pelas implicações éticas (seria antiético administrar doses significativas de MDMA para induzir dano cerebral).
A extrapolação dos resultados obtidos através de modelos animais para humanos não está isenta de limitações, devido à existência de importantes diferenças entre as espécies quanto à vulnerabilidade dos efeitos neurotóxicos. Nesse cenário, a ciência tenta se virar experimentando em outros mamíferos e propondo ajustes para o ser humano.
NA VERDADE, O DANO EM PRIMATAS PODERIA SER PIOR
Sabemos que existem diferenças entre o funcionamento do sistema nervoso do animal escolhido para esta pesquisa, o rato, e o primata não-humano, que está mais emparentado com a nossa espécie.
Por exemplo, é sabido que doses menores de MDMA causam maiores quedas de serotonina no cérebro de um primata não-humano que em outros mamíferos, como os ratos. Da mesma forma, os primatas parecem ter menor potencial regenerativo do sistema serotoninérgico e dos axônios dos neurônios danificados (quanto maior o comprimento do axônio e das suas arborizações, menor probabilidade de recuperação), que os ratos, sendo mais suscetíveis ao dano neurológico permanente.
A soma das evidências nos permite concluir que os primatas são mais vulneráveis que os ratos aos efeitos neurotóxicos do MDMA, apresentam maior persistência de alterações neuroquímicas e estruturais induzidas no nível neuronal e tem uma probabilidade mínima de regeneração das áreas do cérebro que foram danificadas.